terça-feira, 3 de janeiro de 2012

03 - A Duas Águas mas aos Quatro Ventos (conto)

          Batentes e soleiras, janelas, portas e mais portas em diferentes dimensões e direções se enfileiravam, pulo a pulo, não havendo a necessidade de controlar-se o tempo...apenas uma contemplação demorada da parede leste da sala de jantar buscando decifrá-lo em algarismos romanos, decorados mas não compreendidos, mesmo assim indeterminado e impotente para nos conter, como aqueles que tomavam parte no velho barco a remar, remar e remar sem detectar ou até idealizar uma referência, uma chegada. O de importante acontecia ao natural: a partida. A navegação, quase sempre tumultuada, dava-se no interior do casarão ou ao relento, mas sob a proteção do velho marinheiro, que jamais foi acariciado pelo cheiro do mar. Se um dia o vento batia forte seguíamos formalidades e apresentávamos o lobby. O Velho Marinheiro estava outra vez pronto a acobertar-nos, sem controvérsia e sem prosódia, mas com o habitual ranso dos seus olhares vulpinos. E encerrado um festim já fazíamos as contas para a próxima solenidade de adoração ou sociabilidade.
          O outão do casarão, visível do alto da ladeira de chegada,  mostrava e ainda claramente em seu alto-relevo e em cor de destaque o ano de sua construção. Jamais esqueci nos meus estudos básicos, quando requisitado, o ano do final da segunda guerra mundial, politicamente divulgada. O casarão foi construído no ano subsequente. Corríamos naquelas largas calçadas que ladeavam os desenove esconderijos no esconde-esconde da nossa pacata infância. Além desses dispúnhamos ainda do engenho de cheiro adocicado, da casa de armazenagem, da velha casa ao lado do casarão e a casa velha ao lado do casarão e dos dois jardins: um entre o casarão e a casa velha com paredes de pau-a-pique e telhado avermelhado, depois remodelada, e o outro frontal. Num certo período do ano tínhamos o velho sangradouro com seus cardumes obstinados a seguir contrariamente à correnteza e a soltar ovas que são ao mesmo tempo recolhidas, em parte, pelas suas escamas arrepiadas e ao som ofegante de suas guelras entreabertas. Estava garantida a mais nova geração branquial. Era a época da desova. Essa foi a justificativa dada pela sábia Tia Clara.
          Por vezes as meninas colocavam à prova os encaminhamentos maternos de culinária e ofereciam um banquete, na cozinha aberta da casa velha, aos heróis de guerra. A pastagem de fundo e o mamoal do monturo, cultivado para garantir o azeite lubrificante para as moendas ressequidas do engenho de cheiro adocicado e puxado a bois, demarcavam a batalha final. As meninas serviam; os meninos contavam suas façanhas. Curioso era um dos guerreiros que sempre ficava num canto, calado, sizudo e tudo observava. Ouvia tudo. E tudo calava. Tia Clara não resistiu ao costumeiro fato e comentou:  - Este menino é diferente. Nada tem dessa ingenuidade. Ela é apenas aparente. Se não interfere é para não modificar o natural. Um dia ele dirá isso.
          Impressiona-me ainda a sensibilidade de Tia Clara.
          Às vezes ocorriam desentendimentos: à questão eram chamados, após teimas e xingações, tios, avós ou até a sexagerária que cuidou de filhos, netos e bisnetos do casarão, e que era respeitada pela sua rigidez nas atitudes. Um ou outro se destacava pelo palavreado obceno, que quando repetido por Tia Clara, o fazia com três leves pancadas nos lábios, ao feitio do cala-te-boca. O decoro do gesto a absolveria das blasfêmias
do outro.
         - Palavras claras!


                                                          Assis Costa

3 comentários:

  1. muito bom o blog, continue assim, e saiba a tarefa é dura, mas é recompensável abraços

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  2. Assis Costa

    Estou visitando seu blog e já estou viciado, se ao entrar aqui irei deparar sempre com seus belos contos, conte comigo sempre! Sou seu fã.

    Quanto ao seu conto achei belíssimo! Digno de ocupar as páginas de um livro.
    Aproveitando quero te desejar um feliz 2012.

    Abraços!

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  3. Agradeço aos amigos pelos comentários elogiosos. Abraços!

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