quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

05 - Sete por Um (conto)

          Na nossa casa o dia consagrado aos mortos sempre foi nitidamente fúnebre. Minha mãe selecionava  um rosário de parentes que não conheci e um outro do meu tempo. Desalento! Meu pai ouvia... Tia Clara sorria. Sorria pela certeza de que um dia também estaria sendo lembrada, mas, frizava bem que seria lembrada com alegria. Não teriam sido em vão as longas noites que passara em claro. Elas foram a garantia da felicidade eterna, cria. Ora, se um Serafim (anjo da segunda hierarquia divina)  já era garantia de uma vaga ao lado de Deus, o que aconteceria a ela que enviara, sem remorsos, o sétimo?  Se assim era, certamente conseguiria até algumas vantagens junto ao Senhor, além de serem bem-pesadas as suas férteis e desenvoltas opiniões. - Os sete anjos já enviados, quem sabe, na balança de Deus, valham, pelo menos, um Querubim!
             Eu não entendia bem essa estória de Anjos. Por que os meus primos haviam se tornado anjos? Só porque morreram? Ainda bem que a minha mãe não fez-me Serafim! E por que Tia Clara fizera logo sete Serafins e agora queria trocá-los por um só Querubim? Coisas da Tia Clara que só o tempo e com a ajuda do já tão cansado dicionário mesmo que de forma incompreensível e parcial explicou. Dicionário esse emprestado pela     professora que mantinha uma enorme e inútil quantidade de livros. Pensava:  quanto dinheiro gasto em livros que para nada servem. Dez ou quinze exemplares seriam suficientes. Ninguém é capaz de ler tudo isso! " O Pequeno Principe", que a professora chamava de "Le Petit Prince", que me perdoe mas, que menino chato! ele só pensa! eu prefiro a ação. Como a Tia Clara, ela sim, quis um Serafim e fez logo sete. Só não concordo com a proposta que ela anda fazendo a Deus:  sete Serafins por um Querubim. Esse é um péssimo negócio. Eu só troquei o meu  bodoque porque foi por dois peões, senão não ocorreria o negócio. Tia Clara entende de tudo, menos de troca!
             A primeira imagem mental que tive de um anjo também foi obra de Tia Clara. E foi logo de um Querubim! Durante um carnaval ela ficou os três dias na igreja, rezando e fazendo a penitência do jejum. Só aparecia em casa na hora de dormir. Ela dizia que a igreja considerava o carnaval "coisa do diabo". Contou-me que na noite seguinte ao carnaval, durante um sonho, apareceu-lhe um anjo , todo vestido do branco mais branco, com asas e auréola que parecia aqueles meninos das procissões do padroeiro. Mas no sonho de Tia Clara o Querubim tinha poderes: ele surgia do nada e sumia como que por encanto. Fazia soar uma suave música sem no entanto tocar trombetas. Era um agradecimento de Deus pelas penitências oferecidas, dizia. E ela sempre encerrava essas estórias de aparições de anjos com uma elevação da missa: "salva fui... salva sou... salva serei..."
              Muitas visitas ao velho dicionário com características de detetive de romance de mistério: capa preta e coração duro. Suas páginas ensebadas serviram a pelo menos três gerações incluindo a minha.  O velho ajudante de alma dura e capa preta não satisfez a minha curiosidade, totalmente. Serafins e Querubins tinham a ver com um escalão sagrado? Resolvi pedir esclarecimentos a Tia Clara, que gentilmente iluminou-me com os seus sábios pormenores. Esses pormenores da Tia Clara surgiam magneticamente, através de ondas. Algo entre o ver e o pensar. Pura poesia!
             E contou-me:
             - É certo que nos primeiros sete dias de vida, uma criança, que morrendo sem ser alimentada, sem mesmo provar o leite materno, mas sacramentada pelo batismo, tornar-se-á um mensageiro de Deus;  um anjo; um Serafim. Serafim é o anjo de segundo escalão na hierarquia divina, mas mesmo assim, já garante o céu a todos os seus mais próximos familiares terrenos.
            - E disse mais:
            - Bom mesmo é ter um Querubim. Este sim, é o anjo assistente de Deus. Personagem da primeira hierarquia divina. Talvez, o Querubim garanta um lugarzinho no céu até duas ou três gerações. - Por isso o seu interesse em ter um Serafim ou até mesmo um Querubim - se fosse vontade de Deus - no céu.
            Tudo explicado! Tia Clara esclareceu em minutos o que aquele dicionário não concluiu em anos. Que praticidade de relato tinha a Tia Clara! 



                                                        Assis Costa

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